Filarmónicas Civis

Filarmónicas Civis

As academias de diletantes e as filarmónicas civis distinguem-se nos seus intuitos, efectivos e na função do músico profissional. Os intuitos de fruição, prática e instrução musical estão, no decurso do século XIX, associadas a noções como o individualismo e mérito (artístico) e à valorização do conhecimento prático: estes aspectos são sublinhados em ambas as colectividades, sendo notado, no que concerne às academias de diletantes, o estatuto individual dos seus sócios-intérpretes, e no que diz respeito às filarmónicas civis, à importância do colectivo e o intuito de acesso à aprendizagem musical pelas classes menos favorecidas ou por corporações de trabalhadores, aprendizagem que se destina ao serviço da colectividade. As academias de diletantes abrangem diversos agrupamentos musicais: coro, orquestra, banda e outros efectivos; as “filarmónicas civis” são, grosso modo, bandas. Nas academias de diletantes lisbonenses (e possivelmente nas madeirenses), o músico profissional era considerado um sócio honorário, por serviços prestados à instituição: as suas funções compreendiam a direcção de agrupamentos e o ensino. Nas filarmónicas civis, o músico profissional agrega as funções fulcrais ao funcionamento da instituição: regente, compositor/arranjador/transcritor/, arquivista, docente e intérprete.
A constituição das filarmónicas civis processou-se, grosso modo, por institucionalização de agrupamentos de sopros e percussão similares às bandas regimentais ou pela criação em sociedade do efectivo de banda, por iniciativa popular, por mecenato de um nobre ou burguês ou por associação de profissionais de uma mesma actividade. A primeira colectividade deste tipo surge ainda em 1844 (curiosamente a data de fundação da primeira sociedade destinada exclusivamente à prática de repertório para banda em Lisboa, a Sociedade Filarmónica Instrutiva):

O décimo aniversário do famoso 5 de Junho de 1844 foi festejado este ano com mais do que as usuais demonstrações de satisfação, não obstante o actual estado de progressivo abatimento comercial. À pomposa festividade na Catedral feita pela Câmara Municipal, em que foi orador o Senhor Vigário do Estreito de Câmara de Lobos, à brilhante iluminação da Praça Constitucional desde manhã adereçada de copiosas flores e bandeiras, às salvas das fortalezas, da fragata Diana lindamente embandeirada, e da artilharia N. 1, às descargas do Destacamento [nº] 11 que fazia guarda de Honra à Sé, ao Baile no Club Funchalense, etc. etc., acresceu neste ano maior motivo para o contentamento do Público em geral, com a extraordinária abundância de música. De tarde tocaram na Praça Constitucional as excelentes bandas da fragata Diana e do destacamento do Nº 11, e à noite durante a iluminação, a banda da fragata e a dos curiosos da Sociedade Filarmónica, que já pouco deixa a desejar. Uma quarta banda de curiosos atravessou a Praça logo à noite. O concurso público na Praça Constitucional foi muito grande, e realmente a iluminação de velas e vidros de cores brilhava muito entre o frondoso arvoredo que a cobre. (O Defensor, 8/6/1844)

Face à constante referência de iniciativas musicais de diletantes na imprensa periódica, a ausência de qualquer indicação sobre a origem da “quarta banda” sugere tratar-se de uma filarmónica civil; mau grado, esta colectividade não é citada nos anos seguintes.

A 18 de Fevereiro de 1850, “mancebos de diversas profissões mecânicas”, coadjuvados por um dos filhos de Severiano Ferraz, fundaram a Filarmónica Artístico Funchalense (actual Banda Municipal do Funchal).(i) Entre 1859 e 1860 surge a Filarmónica Recreio Artístico Funchalense, activa até finais do primeiro quartel do século XX.
Desde a década de 1870 várias colectividades populares foram criadas,(ii) fruto do discurso que favorecia a capacidade educacional da música enquanto promotora de progresso e civilização e atribuía mérito e reconhecimento aos detentores de capacidade artística. Em 1869 o redactor d’ A Voz do Povo exaltava a Filarmónica Artistas Funchalenses: “Bem hajam os artistas que se vão nobilitando, dando passos honrosos no caminho do progresso e tomando lugar no grande banquete da civilização.”” Entre 1871 e 1872, surgiu a Filarmónica Recreio dos Lavradores (actual Banda Municipal de Câmara de Lobos); a data mantida pela instituição é 18 de Novembro de 1872. Em 9 de Setembro de 1872, fruto de uma querela no seio da Philarmonica Artístico Funchalense, foi fundada a Filarmónica Artístico Madeirense (actual Banda Distrital do Funchal). Em 1874 surgem 3 bandas: uma Filarmónica em Santa Cruz; a Sociedade Filarmónica Paulense (em 1929, foi denominada Filarmónica Monte Carmo do Paul do Mar; desde 1940 intitula-se Banda Municipal Paulense); a Filarmónica União de São Jorge (activa até 1920). Entre 1874 e 1875 foi fundada a Filarmónica União Fraternal Ribeirabravense (a data mantida pela actual Banda Municipal da Ribeira Brava é 6 de Maio de 1889). Em finais de 1876 foi criada uma banda filarmónica no Porto Moniz, cuja actividade prolongou-se até finais do século XIX. Em 26 de Novembro de 1878 foi fundada a Filarmónica Fanfarra Funchalense, activa pelo menos até 1887.

Em 1882 há referência às duas filarmónicas de Santa Cruz – União Santacruzense e Fraternal Recreativa Santacruzense – tendo uma destas se extinguido em cerca de 1888. No mesmo ano foi criada a Filarmónica Restauração de Portugal; em 1885 passou a fazer uso do nome do seu mecenas, Principe d’Oldembourg; extinta em 1964, foi reactivada em 1985, só se estabelecendo ligações com a Filarmónica Restauração de Portugal desde 1996. Em 1883 temos referência à Filarmónica Operária de Santo António do Funchal. Refira-se nesta década a constituição de bandas enquanto espaço lúdico de uma corporação laboral: a Banda dos Bombeiros Voluntários Madeirense foi fundada em 1889, com integração, por convite da Câmara Municipal, de músicos da Filarmónica Artística Funchalense; a Filarmónica Recreio União Comercial é fundada em cerca de 1898.
A 1 de Dezembro de 1895 foi fundada a Filarmónica Recreio União Faialense (actual Banda Filarmónica do Faial). A Filarmónica D. Carlos I (actual Banda Municipal de Machico) foi criada entre 1896 e 1897; a data fixada pela instituição é 1 de Novembro de 1896. Em 1899, a tentativa de constituição de uma banda no Estreito de Câmara de Lobos acabou por gorar-se.

Entre finais do século XIX e inícios do século XX observa-se o crescimento demográfico do efectivo das bandas já existentes e a fundação de diversas bandas filarmónicas que ditariam, respectivamente, à presença de parte das bandas em serviço (um fenómeno a que se assiste ainda hoje, sendo comum a escolha entre 18 a 30 músicos) e o fim do estabelecimento de contratos com a banda regimental. A história das bandas filarmónicas tardo-oitocentistas e novecentistas é igualmente caracterizada pelo fenómeno de criação de novas bandas – a intitulada “música nova” – em municípios já providos de uma instituição deste tipo. Salvo raras excepções, a maioria destas colectividades extinguiu-se no decurso do mesmo século, devendo notar-se a posterior tentativa de reconstituição da banda filarmónica. Finalmente, note-se a criação de filarmónicas juvenis, algumas das quais no âmbito de instituições de ensino geral ou especializado: Banda da Escola de Artes e Ofícios (1921), Banda Recreio Mocidade Funchalense (1922), Orquestra de Sopros do Gabinete Coordenador de Direcção Artística (1993) e Orquestra de Sopros do Conservatório – Escola Profissional das Artes da Madeira – Eng. Luís Peter Clode.

As bandas fundadas no decurso do século XX cuja actividade se prolongou até aos nossos dias são a Banda Recreio Camponês, fundada em Câmara de Lobos a 1 de Dezembro de 1910; a Filarmónica União Santacruzense, instituída em 1922 (embora se deva notar que a data mantida pela Banda Municipal de Santa Cruz, colectividade única desta zona, seja 8 de Dezembro de 1887); a Fanfarra Recreio Santanense (actual Banda Municipal de Santana), criada em 1926 (as suas antecessoras são descritas adiante); o Grupo Musical de Nossa Senhora de Fátima, constituído três anos volvidos no Arco de São Jorge, antecessor da Banda Escola Nossa Senhora de Fátima do Arco de São Jorge (cuja fundação terá ocorrido a 13 de Outubro de 1933), antecessor da Banda Escola Nossa Senhora de Fátima do Arco de São Jorge; a Sociedade Musical do Porto Santo, criada entre 1930 e 1933 e extinta em 1971, vindo a fundar-se a Filarmónica da Casa do Povo de Nossa Senhora da Piedade do Porto Santo em 1988; a Banda Paroquial de São Lourenço – Camacha, criada em 1973; a Banda Orquestral – os Infantes, fundada a 27 de Julho de 1986; a Banda Filarmónica da Casa do Povo de São Vicente, criada em 1990 e a Orquestra de Sopros do Gabinete Coordenador de Direcção Artística, constituída no âmbito desta instituição governamental em 1993. No século XXI constituíram-se as seguintes instituições: a Banda Filarmónica do Caniço e Eiras, criada em 2003, a Orquestra de Sopros da Associação de Bandas Filarmónicas da Região Autónoma da Madeira, constituída em 2007, e a Banda Filarmónica de Santo António, fundada em 2010.

Outras colectividades instituídas no século XX extinguiram-se, devido a factores tais como a emigração, a emergência de novas actividades de lazer (entre estas, sobretudo o desporto), o sucesso obtido pelas bandas existentes e a sua ampla filiação de sócios, a instabilidade sócio-económica da década de 1930 e as Guerras Mundiais e do Ultramar. Refira-se no Funchal, a Filarmónica Recreio Lusitano, iniciada entre 1900 e 1909; a Fanfarra Recreio de São Roque, fundada em 1901; a Banda da Escola de Artes e Ofícios, criada em 1921; a Banda Recreio Mocidade Funchalense, instituída no ano seguinte; a Fanfarra Portada de Santo António, fundada a 9 de Novembro de 1924; e a Filarmónica Academia Musical Instrução e Recreio, iniciada a 1 de Dezembro de 1933 (Banda Recreio dos Trabalhadores desde 1942). Foi iniciada a 1 de Dezembro de 1933.

No Campanário são referenciadas a Filarmónica Recreio Artístico do Campanário, activa entre 1903/7 e finais das décadas de 1920/1930; após a sua extinção uma nova banda foi criada em 1938, sendo desconhecido o seu período de actividade. Em Santa Cruz, as filarmónicas União Fraternal Recreativa Santacruzense e Sociedade Capricho Santacruzense, activas em 1906, cessaram a sua actividade no decurso do primeiro quartel; em 1946 surgiu uma nova banda, a par da já existente Banda Municipal de Santa Cruz. Na Ribeira Brava, a “música nova” Filarmónica União Musical Ribeirabravense esteve activa entre 1912 e a década de 1950; em 1963 surgiu uma nova segunda banda do município, intitulada Banda Recreio Musical Ribeirabravense, cuja actividade teve o seu término em 1970. Em Machico, uma nova banda foi fundada em 1920. Na Calheta, a Filarmónica União Calhetense foi criada em 1923, desconhecendo-se a data da sua extinção. Anos depois, em 1940, foi iniciada na mesma zona uma banda, cujo período de actividade é incerto. Já em finais do século XX, foram constituídas a Banda Recreio Musical da Casa do Povo da Serra d’ Água, activa entre 1998 e 2000, e a Orquestra de Sopros do Conservatório – Escola Profissional das Artes da Madeira – Eng. Luís Peter Clode, existente entre 1998 e 2007.

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(i) A Ordem 7/2/1852. É plausível sugerir a relação (ou pelo menos a influência) da quarta banda de curiosos com a instituição da Filarmónica Artístico Funchalense.
(ii) O conhecimento de que dispomos actualmente sobre os grupos musicais criados na região entre as décadas iniciais do século XIX e décadas finais do século XX é devido aos excelentes artigos sobre esta temática elaborados por Manuel Pedro Freitas (esp. 2008: 401-513).
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